segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sem malícia
Lá no Careiro da Várzea, o transporte escolar, era feito de barco (clarooo). Pelo menos nas margens direita e esquerda...e no Cambixe também! Todo começo de ano era aquela muvuca, pra saber se haveria transporte fornecido pela prefeitura, ou se os pais teriam que arcar com as despesas.
Creio que foi em 88, que o ano letivo começou complicado. Ninguém sabia se haveria ou não o transporte...e assim mesmo nos arrumamos (eu, primos Francimar, Gerdilane e os vizinhos) pra estarmos a postos. Não teve barco naquele dia. Frustrante! A ansiedade era pra reencontrar os colegas do ano anterior. As férias eram mais longas.... parece. No dia seguinte, papai me instruiu a ir até a casa do sr. Luis (da Val. Sua esposa se chamava Val, e por isso o nome), pois ele tinha 3 filhos em idade escolar, e tinha uma canoa com um motorzinho, e jamais deixaria os filhos (Inês, Izete e Caçula, morenos, organizados e engomadinhos, que até me sentia desorganizada só de olhar pra eles. Todos nerds) faltarem sequer um dia de aula.Dito e feito! Eu e a galera (já citada acima), fomos e acertamos com sr. Luis um valor pra irmos e voltarmos com ele e suas crias engomadinhas. Era tudo muito organizado. Não podia falar alto nem fazer nenhuma espécie de bagunça na embarcação. Me senti engaiolada, apesar da canoa não ter nenhuma parede além do teto improvisado de lona azul.
Ao chegarmos na Vila, e atracarmos no flutuante do sr. Carlinhos (figura vesga e avantajada, cujo comércio exorbitava os valores das mercadorias), o nosso "comandante" nos instruiu a descermos um de cada vez, para não arranhar a pintura nova da canoa (!!!!). Pensei: como pode esses meninos dele viverem nesse controle absurdo?! Aí lembrei que eles eram meros robôs!
Subi o barranco feliz da vida! Respirando ares de um ano letivo cheio de altos e baixos. Muito barulho..muita gritaria..muita tensão..muito tudo! A tarde passou como todas as outras...com o acrescimo de reencontrar o povo todo depois de longos dois meses de férias.
A volta pra casa seguiu tranquila (na medida do possivel, já que parte do prazer de ir e vir da escola. era a zueira dentro do barco, e naquele caso especifico, não haveria por culpa do "comandante").
Quando lembro de olhar em direção à Manaus, lembro do sol imenso e vermelho, deixando o céu cor de rosa, e a água do Solimões meio dourada...ai ai...depois de uma tarde de aulas, e o controle absurdo do comandante, só aquilo pra me trazer esperança pro dia seguinte.
Descemos da canoa com medo até de respirar e descascar com nosso bafo, a tinta azul brilhante da canoa (indigna). Subimos o barranco...e teriamos que andar pelo menos 1km e meio até nossos lares. Começamos a caminhada, e iamos nos aproximando da casa do Alberto (50 e poucos anos, moreno, voz cavernosa, e gostava de pinga do café até a janta), onde a poucos dias, um senhor (Chico Perez, idade indefinida, voz quase inaldivel devido algum problema nas cordas vocais, que bebia 24hs por dia, no dia que parou, morreu!) muito meu conhecido, havia morrido de forma um tanto quanto trágica. Emanuel (branco, cabelos pretos, alto demais, e metido a palhaço), lembra do causo da morte, bem quando estávamos chegando no terreno da casa "mal assombrada". Ele e Reginaldo (branco, banguela, e de cabelos falhos e que se achava um galã de cinema) resolveram apavorar a mulherada que vinha logo atrás.
Se esconderam em meio ao cacoau, e quando íamos passando, pularam gritando e roncando feito porco. Foi uma debanda geral. Eu sempre tive problemas pra reagir em meio à pressão. Simplesmente o caos se instaurou. Tentamos nos juntar, e ao mesmo tempo nos atrapalhamos e caimos. Eu caí no barranco. Senhores..o barranco era um maliçal só! Malícia é uma planta que tem uma regra, dizer: maliça teu pai morreu! ai dava um leve toque e a planta ia se fechando.
Eu só descobri naquele dia, que além de sentir tristeza, ela também era temperamental e sabia se defender. Tinha uns espinhos curvos na ponta, que ai cair de cara, fiquei com o rosto cheio de espinhos. Dor e humilhação me dominaram...mas o medo de permanecer naquele lugar sinistro me fez correr (nunca fui boa em correr. Pareço um polvo tentando me equilibrar em terra firme) para longe. A dor só foi de fato sentida, quando cheguei em casa. Entrei no flutuante, com tantos espinhos no rosto, que papai deve ter achado que a filha havia criado barba e bigode na hora da aula. Fui pro espelho (tinha no máximo 20x15 de tamanho), já antevendo o estrago! Chorei de imaginar as marcas que estariam no outro dia. As comparações que seriam feitas na escola...e sofri por atecipação....claro. Senão, não seria eu.